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Como construir relacionamentos sólidos em tempos líquidos?

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Como as redes sociais, o marketing e a busca por significado moldam nossas interações? Descubra como isso afeta a construção de relacionamentos sólidos em tempos líquidos.

Seus vínculos são duradouros? Você tem paciência com as pessoas? Você tem FOMO (Fear of Missing Out ou Medo de Estar Perdendo) no amor? Suas relações são efêmeras e pautadas por interesse? Essas foram as perguntas feitas pelo filósofo Luiz Felipe Pondé na tentativa de ilustrar como construir relacionamentos sólidos em tempos líquidos é a pauta das relações modernas.

O filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017) criou o conceito de amor líquido para descrever como a sociedade pós-moderna desenvolveu seus afetos. Seja nas novas formações familiares e de trabalho, na desconexão com as comunidades onde habitamos, nos relacionamentos amorosos ou nas amizades, Bauman aponta que a fragilidade dos laços humanos é tão grande que se tornou fluida pela facilidade de desconexão e descarte. 

Na lacuna das conexões sólidas, as redes sociais emergiram. Conectados a imagens apelativas, editadas e mentirosas, recriamos diariamente um cenário de desejos quase que universais. Um terreno muito fértil para o marketing, porém perigoso para aqueles que não desenvolvem suas demandas reprimidas na vida real. Assim, fica para o mundo digital o anseio por soluções fáceis e rápidas para suas angústias.

Acompanhe as consequências do conceito “líquido” na atualidade e possíveis caminhos sólidos diante de tanta fluidez. 

Redes sociais e a intimidade artificial 

relacionamentos sólidos em tempos líquidos

Desde a pandemia o sentimento de solidão tem sido uma preocupação corrente nas redes, entidades médicas e governos. Segundo uma reportagem da BBC, no Reino Unido e Japão, por exemplo, já existe o Ministério da Solidão, dada a relevância do assunto. Isso porque, as tentativas modernas de fugir das angústias inerentes à condição humana estão se demonstrando ineficientes e seus efeitos estão nos levando a caminhos contrários à evolução, como a infantilização dos adultos. 

Para Bauman, esse fenômeno representa a invocação da proteção e conforto do útero materno. Ou seja, se isolar nas telas e nas redes sociais estabelece uma zona de conforto onde eu lido, de forma narcisista, apenas com pessoas que concordam comigo.  No coletivo das redes, não somos obrigados a confrontar com o diverso para aprender a dialogar, a negociar e amadurecer. Assim, a facilidade com que podemos nos conectar e principalmente desconectar de outras pessoas no mundo digital, tira do indivíduo a responsabilidade de se comprometer com algo duradouro. Afinal, é podemos encontrar algo melhor no passe de um clique.

Neste cenário, onde você edita sua vida perfeita se tornando uma grande marca a ser seguida e admirada e por fim, acredita ser esse personagem que criou, a Inteligência Artificial tem um campo fértil para colaborar com a construção dessa ilusão. 

Inteligência artificial e intimidade líquida

Na mesma lógica do autocentramento, estamos fugindo dos desafios de encarar a intimidade de um relacionamento (onde é necessário um descentramento) para nos relacionar conosco. Replicando uma espécie de espelho revestido de avatar onde o algoritmo é treinado para satisfazer todos os desejos. Namorados (as) digitais nunca dizem não, sempre estão com bom humor e com a imagem que mais nos agrada. 

Essa submissão digital nos ajuda a entender a condição “predatória” das relações sociais reais, onde tentamos tornar o outro um objeto perfeito, e, portanto, impossíveis de existir. Este comportamento distanciou os relacionamentos (não só entre amantes, mas familiares e amigos também) do que conhecemos como amar, admirar e respeitar o outro exatamente como ele é, com seus erros e acertos. 

Ao invés de buscarmos em nós a empatia humana para encontrar maneiras possíveis de amar novamente, fugimos mais uma vez para o “útero da mãe” e encontramos na inteligência Artificial, o conforto, a perfeita projeção narcísica, para intimidade. 

Marketing como solução

relacionamentos sólidos em tempos líquidos e marcas

Dentre os filósofos modernos que baseiam suas análises nos conceitos de modernidade líquida, Leandro Karnal e Luiz Felipe Pondé trazem importantes reflexões de como o marketing preenche esse vazio que a falta das conexões reais estão criando.

Para Karnal, por exemplo, no mundo líquido que vivemos, todos os valores são relativos. Autoridade, gênero, concepções éticas e morais são aptas de interpretações relativas e subjetivas que dependem do sujeito. Assim, o individualismo sobre o que importa e faz sentido para mim se sobrepõe ao esforço para trabalhar a construção de conexões emocionais elaboradas. Nesse contexto, o filósofo aponta que a única obrigação comum a todos é ser feliz, fazendo do sonho algo coletivo e a única forma de pertencer em tempos líquidos.

Aqui, o marketing oferece a solução de pertencimento ao alcance de alguns cliques. As campanhas promovem a discussão de dilemas sociais como racismo, machismo e homofobia para nos ‘poupar’ de diálogo em rodas de conversa.  Marcas se apresentam como saída para alcançarmos o “sonho coletivo” de pertencer e lutar por alguma causa, algum propósito, sem precisar do esforço incluído na argumentação do mundo real. Desta forma, ao nos engajarmos com marcas que levantam bandeiras sociais, temos permissão para sermos felizes.

Case Apple

A Apple, por exemplo, exalta essa felicidade em suas campanhas enquanto promove seus lançamentos. Seus vídeos têm um storytelling com personagens inteligentes, confiantes, e conectados com um mundo de inovação e possibilidades. Ao comprar o Apple Dot você estará apto a dançar com a alma e esquecer qualquer problema do seu dia de trabalho ou ao usar a câmera super potente do seu novo Iphone,  você pode transformar a vida banal do seu cachorro  em uma série de momentos de extrema perfeição.

O problema aqui não é a venda de um sonho alcançável e sim acreditarmos neste sonho como uma possibilidade real de uma existência melhor para a humanidade. 

Marketing existencial

Do mesmo modo, Pondé sinaliza que essa busca humana por propósito faz com que produtos adquiram significados que transcendem sua funcionalidade. O marketing de produtos veganos, por exemplo, aposta no peso social do veganismo para engajar sua audiência.

relacionamentos sólidos em tempos líquidos e o veganismo

É o caso dos anúncios envolvendo dieta vegana ou adesão ao veganismo. Neles, o foco principal não será a funcionalidade alimentar da comida e sim os valores éticos e morais humanos envolvidos naquela compra.

“Marketing é a edição da vida” Luiz Felipe Pondé

Assim, Pondé pontua que num mundo infantilizado, os significados são cada vez mais vendidos para pessoas infantilizadas, na busca de significados fakes para fugir da dor de suas angústias. Nas mídias sociais, por exemplo, criamos um personagem nosso para projetar uma imagem que já compramos nas campanhas que consumimos. Ele se encaixam na perfeição esperada pela nossa carência de amadurecimento emocional. 

“Para ser sólido é preciso ser cético com a ideia que a vida vai ser uma agenda de prosperidade”

Luiz Felipe Pondé

Como a perfeição não existe e humanos vão, por vezes, cometer erros, o marketing existencial oferece um modo de vida que solucione os problemas que inventamos. O perigo aqui é acreditar que isso vai além da esfera pessoal e pode ser uma solução global. 

Uma dessas invenções é a obsessão da indústria de cosméticos contra o envelhecimento. Atualmente, a pauta deixou o lugar dos cremes anti-idade e assumiu narrativas que clamam por saúde. Aqui, as estratégias de marketing se adéquam a promoção de alimentos, exercícios e hábitos que combatem envelhecimento. 

O livro Healing Superfoods for Anti-Aging: Stay Younger, Live Longer (Superalimentos curativos para antienvelhecimento: fique mais jovem, viva mais) é um exemplo desse movimento. Tudo isso, promovido com a desculpa de uma vida saudável. Como se envelhecer fosse alguma doença.

É preciso, segundo Pondé, fazer o esforço de lidar com a angústia, a ansiedade, as inseguranças da vida e parar de idealizar um propósito maior. Acima de tudo, viver em harmonia conosco e com os que nos rodeiam, porém, isso dá trabalho real e não se resolve com um clique.

Relacionamentos sólidos em tempos líquidos

amor líquido

“Só sairemos da caverna platônica de imagens fantasiosas, incapaz de estabelecer laços sólidos, se sairmos à luz do dia e percebermos o mundo, restabelecer o padrão humano e restabelecer a solidariedade.”

Leandro Karnal

Para Bauman, existem dois valores fundamentais, indispensáveis para uma existência satisfatória, a liberdade e a segurança. Porém, há um paradoxo entre as duas, a segurança sem liberdade é escravidão, já liberdade sem segurança é o caos.

Ser sólido em tempos líquidos significa o esforço que cada um deve fazer para encontrar o equilíbrio que nos satisfaça, negociar consigo onde preservar sua austeridade e onde sucumbir ao outro, ser cético as fórmulas mágicas, entender que seremos frutos das nossas análises e escolhas e, portanto, devemos suportar as consequências e mais importante, voltarmos a apreciar e parar de ter medo dos erros, das imperfeições e dores dos relacionamentos reais, pois é só através deles que evoluímos e produzimos a verdadeira arte da vida.

Beijos da Be

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